O mal desafia nossa compreensão. Desde o paradoxo de Epicuro, ando pela teodiceia de Leibniz, tentamos compreender a existência do mal no mundo. Ainda que saibamos que ele nos acompanha a todo momento, quando irrompe na sua forma mais brutal, é como se saíssemos do conforto de nossa ignorância cotidiana. Esquecemos dele, mas ele se dá a conhecer e nos afronta. As atrocidades do Hamas em Israel são um exemplo disso. 5k606d
Mais próximo de nós, no Rio de Janeiro, três médicos foram assassinados em razão de uma confusão banal: os criminosos queriam executar um miliciano inimigo e, como um dos ortopedistas tinha semelhança física com o rival, acabaram dando 33 tiros no grupo inocente. O absurdo da situação continua. Lemos na imprensa que a investigação da polícia descobriu que líderes do Comando Vermelho ficaram indignados com o erro dos comparsas, temerosos de que o crime provocasse um revide brutal das autoridades. Por isso, os assassinos dos médicos teriam sido submetidos a um “tribunal do crime” que lhes imputou a pena de morte. A facção teria feito questão de não sumir com os corpos para evitar especulações e para que o caso não ficasse sem um desfecho.
Nessa história, é tudo tão grotesco que nos custa crer que vivemos num país que tenha leis e instituições. Desde a guerra entre facções criminosas, que ceifa a vida de tantos inocentes, até a solução do tal “tribunal do crime” em julgamento feito, segundo se lê, por videoconferência de dentro de um presídio, vemos a falência de nossas instituições. E também percebemos como o mal destrói famílias, futuros e esperanças.
Aqui, cabe fazer uma distinção. Há males e males. Há o mal sofrido, que ocorre sem que o ser humano tenha sido sua origem (doenças graves, catástrofes da natureza). Mas os males que vimos na semana ada são o mal moral, que surge da ação humana e que, portanto, fere nosso senso de justiça. Contra ele, podemos e devemos agir para que tenhamos um mínimo de paz social.
Entra aí nossa incapacidade de conter a violência na sua forma brutal. Se criminosos dominam regiões inteiras onde o Estado deveria estar presente, aceitamos e causamos o mal. Se jovens são cooptados pela criminalidade quando deveriam ter educação de qualidade, aceitamos e causamos o mal. Se nossa Justiça é lenta e errática, aceitamos e causamos o mal.
O grande problema desse esgarçamento do tecido social é que, quando imersa na insegurança, a pessoa tende a abrir mão de valores essenciais para conseguir sentir-se segura. O filósofo Thomas Hobbes compreendeu isso melhor do que ninguém, vivendo numa Inglaterra dilacerada pela guerra civil. Para ele, sendo o homem o lobo do homem, entregar a liberdade ao soberano em troca da paz social é um ato racional e legítimo.
Eis mais um perigo de se aceitar a violência como parte da vida normal. Além do risco físico em si, quando menos se percebe a pessoa renuncia até mesmo à sua liberdade para ao menos sobreviver. É daí que nascem as tiranias: do desespero que se camufla com a máscara da esperança.