Maycon tem 15 anos e aprendeu o que muitos garotos da sua idade jamais saberão. Nem de ver em filme. Sabe tirar leite de vaca. Sabe roçar pasto. Sabe cortar capim, picar capim e botar capim no cocho. Sabe matar porco, sapecar porco e rachar o porco (morto) ao meio, em duas bandas. Mas aí Maycon aprendeu a dirigir trator. Ganha R$ 10 por hora e não quer mais saber de outra coisa senão pilotar o Massey-Ferguson pelas várzeas do distrito de Ubari. Não voltará a botar a mão em foice, martelo ou machado.
Pilar tem 12. Gostava de andar a cavalo, capitã do time de handebol do colégio. Boa de vôlei, natação e queimada. Começou a fazer aula de circo. Sabe pendurar-se em liras, trapézios e tecidos, anda sobre esferas de um metro de diâmetro e faz malabarismo com quatro pinos. Mas desde que ganhou um smartphone poderoso, com chip 4G, tem ado mais tempo na horizontal e sente crescer a preguiça de andar a cavalo, jogar handebol, vôlei e queimada, nadar e pendurar-se de cabeça para baixo.
Eduardo tem 24 e mora a 900 metros do trabalho. Sempre fez o percurso casa-serviço a pé. No caminho papeava com o catador de lixo do bairro, com o velhinho que eia com o chow-chow cor de caramelo, com o frentista do posto Shell. Observava os saguis que arriscam-se nos fios telefônicos e de alta tensão. Já viu um ser eletrocutado, até. Mas desde que financiou um Volkswagen Gol em 60 meses, Eduardo faz o percurso dirigindo, vidros fechados e ar-condicionado, sem papo e sem macaco.
A máquina seduz.
Talvez um dia também eu, se não estiver atento e forte e me agarrar ao que preservo de entusiasmo pela carne em detrimento do aço, a poesia em vez da lógica, as veias em vez dos fios, o sangue em vez da graxa, os olhos em vez das telas, talvez um dia também eu me recline em uma cadeira, aperte um botão e espere que a máquina, feiticeira e sedutora, me entregue uma crônica que sirva aos olhos mecanizados de leitores semiautômatos.
Talvez um dia.
Mas hoje não.
“Automaton”, arte de Kazuhiro Nakamura
Wendell Guiducci
Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka.Instagram: @delguiducci
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