‘A palavra tem poder de ação e é antibélica’, diz Elisa Lucinda
A poeta, escritora e atriz assina a direção artística e curadoria da feira literária nacional Festa da Palavra, que começa nesta quinta-feira

O livro, para Elisa Lucinda, 62 anos, é a viagem mais barata do mundo. “Abrimos um livro e estamos em Nova York, no interior do Estado do Espírito Santo, no Senegal, no Egito, na Grécia etc. Atravessamos os tempos”, afirma a poeta, escritora e atriz. Parte da juventude está muito desestimulada à leitura, complementa. “Acho que ela tem que entender que é ali que está a viagem.” Elisa é responsável pela idealização, direção artística e curadoria da Festa da Palavra. A feira literária nacional visa a estimular justamente o hábito da leitura. Embora já tenha sido gravada em Itaúnas, distrito de Conceição da Barra (ES), a programação será exibida gratuitamente de quinta-feira (22) a domingo (25) no YouTube. A realização do evento é do Instituto Manguerê e da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo. “É uma festa. Vamos comemorar a revolucionária palavra. A palavra tem poder de ação e é antibélica. Não faz o barulho das balas, das guerras, mas tem poder.”
Em entrevista exclusiva à Tribuna, Elisa detalhou a proposta da primeira edição da Festa da Palavra a partir das próprias percepções sobre a relação do público com a literatura. Termo que, conforme ela, as pessoas acham chato, porque é associado a coisas desagradáveis. “O problema é que a literatura é dada como castigo. Não é assim não, gente. Quem pode obrigar alguém a ar para a próxima página? Apenas a própria leitura, o próprio livro, que lhe atrai a ponto de querer saber o final.” Elisa quer que os jovens entendam que podem encontrar nos livros coisas que estão procurando. “Se o adolescente souber que tem sacanagem, erotismo, aventura, caminhos que nos levam a nos conhecer melhor, ele não largaria os livros.” Em parceria com a Secretaria de Educação e Cultura de Conceição da Barra, o evento distribuirá para as escolas públicas do município caixas de livros dos autores da feira literária.
De acordo com a escritora, há uma concepção de que literatura boa é aquela chata. “Se alguém faz um texto criativo, dizem que não é literatura. Se é um texto chato, rebuscado, formalista, dizem que é.” A forma é tratada como mais importante do que o conteúdo, acrescenta. “O contador de histórias tem que pensar não só o que contar mas como contar.” Elisa aponta que, na verdade, a literatura permite aos leitores grandes autorizações. “Me lembro que, após ler Fernando Pessoa, falei: ‘Olha! Eu posso escrever versos livres assim">Elisa Lucinda encenará as peças “Palavra é poder” e “Na boca da palavra”, sendo o último ao lado de Geovana Pires (Foto: Vitor Nogueira e Edson Chagas/Divulgação)
Elisa relembra, por exemplo, de um episódio durante uma peça que protagonizou. “Sou doida para encontrar uma figurinista preta. De vez em quando, até rola”, pontua. “Certa vez, interpretei uma mulher chiquérrima em uma peça do Sérgio Maggio. A figurinista na época – que era boa, inclusive -, perguntou pra mim o que estava pensando em fazer para o cabelo da personagem. Então, eu respondi: ‘Estou querendo usar uns turbantes com uns broches.’ Aí ela questionou: ‘Mas você está falando de turbantes em uma linha afro ou em uma linha chique?’. Essa é a porrada diária que as pessoas nem sabem que estão dando”, explica. “Eu que não deixei ar e perguntei: ‘Mas são antagônicos?’. Você tem que ter categoria.”
A escritora também questiona, por exemplo, as redações e bancadas predominantemente brancas dos veículos de comunicação. “Quando ocorreu o assassinato do George Floyd, o jornalismo se tocou que estavam chatas aquelas bancadas com seis jornalistas todos brancos. Eu ficaria constrangida. Botaria um preto só para disfarçar. Eu acho que tem que ser pelo menos meio a meio. Estamos falando de Brasil. (…) Agora mesmo, durante a pandemia, me questiono o porquê de os jornais não convidarem sequer um epidemiologista preto. Só médicos e cientistas brancos aparecendo no jornal.” Conforme Elisa, somente agora pessoas progressistas se deram conta de que também são racistas e classistas. “Pessoas que criticavam colegas que não sabiam distinguir uma taça de champanhe de uma taça de vinho tinto. É conversa de casa grande. Tudo isso é uma porrada narcísica na imagem que a gente tinha de Brasil. O Brasil precisa urgentemente sair do lamaceiro escravocrata em que está metido há quase quatro séculos.”
‘Não sei se sobra Brasil’
Na última quinta-feira (15), foi a público um abaixo-assinado com s de mais de 30 mil pessoas em defesa do impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Elisa Lucinda está entre os signatários do documento intitulado “Artistas e sociedade pelo impeachment”. A princípio, explica Elisa, não era favorável ao impedimento de Bolsonaro. “Queria que ele saísse junto com toda a corja pelo voto. Mas não sei se o Brasil aguenta mais um ano de Bolsonaro.” Ela cita, por exemplo, as mais de 500 mil mortes durante a pandemia de Covid-19, a omissão do Governo federal em garantir a inclusão remota de alunos para aulas e o baixo número de inscritos para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) neste ano. “Estávamos indo para outro caminho, cheio de inclusão, sistema de cotas, um monte de gente formada no ensino superior pela primeira vez na família etc. É uma avalanche de retrocessos no país.”
Elisa ainda recorda a exclusão de personalidades negras como Gilberto Gil e Ruth de Souza da Fundação Palmares em dezembro de 2020, bem como o estado da Cinemateca. “É muito incêndio na mata, literalmente. Não sei se sobra Brasil. Por isso sou a favor do impeachment.” Questionada sobre qual seria o papel da palavra e, sobretudo, da leitura em meio ao quadro sócio-político do país, Elisa aponta a interpretação de texto como saída. “Ler não é apenas juntar palavras. Ler é interpretar aquilo tudo”, pontua. A escritora lança mão de uma analogia do veto do secretário Especial de Cultura, Mário Frias, ao financiamento do Festival de Jazz do Capão, na Chapada Diamantina, Bahia. “O Mário Frias diz que brecou o Festival de Jazz do Capão porque era declaradamente antifascista. Ora, a leitura que faço é que ele é fascista, de que a Secretaria de Cultura do Brasil é fascista. Se uma iniciativa cultural pública é barrada porque declarou aos quatro cantos ser antifascistas e, por isso, não é subsidiada, em outras palavras estou dizendo que ela está lhe atingindo. A leitura é, na verdade, interpretar a vida.”