‘Colocaram uma arma na cabeça da minha mãe e levaram meu irmão’: Há 40 anos, crianças eram tiradas de casa à força e colocadas para adoção
Decisão favorável à indenização pelo Estado e pela União chama a atenção para caso que tirou 176 crianças de suas casas; sensação de impunidade ainda atormenta famílias

Era 23 de dezembro de 1986, véspera de Natal, na cidade de Santos Dumont, com seus cerca de 40 mil habitantes. A memória de Maria Concebida Marques, na época com 13 anos, é de que tudo começou com uma correria em sua casa, com seus irmãos de 9 e de 4 anos tentando escapar dos comissários de polícia que tinham entrado sem pedir licença. Não conseguiram subir juntos o morro que dava o para outra rua. Essa foi a última vez em que ela viu o irmão mais novo, Paulo César. “Colocaram uma arma na cabeça da minha mãe e levaram meu irmão. Não teve como reagir muito, mas ela tentou. Prenderam ela por algumas horas. E sumiram com as crianças que estavam dentro do camburão”, relembra.
A história de sua família não foi isolada — faz parte dos 176 casos de adoção à força que atingiram a cidade, durante os anos de 1985, 86 e 87, quando uma quadrilha de tráfico de crianças atuava no local. Quarenta anos depois, esse caso rendeu uma decisão na justiça favorável à indenização de três dessas famílias, incluindo a de Maria Concebida, pelos danos causados pelo Estado e pela União. Mas essa história ainda está longe de ter um ponto final: seja porque ainda não se sabe o que aconteceu com muitas dessas crianças, seja pela sensação de impunidade que ainda paira na cidade ou ainda pela luta dos familiares que sonham com outro desfecho.
Mesmo que nem todos conheçam esse crime, ele foi noticiado pela imprensa e teve atenção nacional, mostrando o envolvimento de agentes públicos, religiosos e advogados da região em um esquema judicial fraudulento. “Essa é uma história que, se chegar aqui no meu bairro, todo mundo conta. Mas é uma história que ficou só nos bastidores”, conta Maria Concebida, que hoje tem 53 anos. Quando seu irmão foi levado, ela ainda não sabia que aquele crime estava sendo praticado com várias famílias da região, incluindo a de Heloísa da Silva e a de Isaura Sobrinho, que estão junto com ela no processo e que tiveram, cada uma, três crianças levadas para fora do país. “Ficamos sem saber a quem procurar, porque era a Justiça que estava envolvida nisso. (…) Não foram 3 ou 4 crianças. Foram dezenas, centenas. Como não fizeram uma investigação">Quem sabe o que aconteceu com muitas dessas crianças? Como foi o caminho que elas trilharam depois que foram embora daqui? Já sabemos que uma dessas crianças sofreu abuso dos pais que a adotaram até a adolescência, depois se envolveu com drogas. (…) Essas pessoas não falam nem português. São pessoas que perderam suas raízes, suas origens, seus laços familiares”, reflete.
Muitas dessas pessoas, como ressalta, ainda não sabem essa história. “Hoje, adultos, vários ainda acreditam que foram adotados porque os pais os maltratavam ou os abandonaram, foi isso que foi plantado na cabeça dessa criança desde que era pequenininha”, diz. Ele também já conversou com mães que dizem que, na época, pensavam que o estado estava certo, que era porque elas eram pobres, então não tinha condições de cuidar dos filhos — e que continuaram se culpando durante muitos anos. “A gente não pode deixar de considerar que aquela época favoreceu a prática desse crime. Era um momento em que as pessoas tinham menos liberdade. (…) Ao invés de proteger as pessoas, um estado mais forte serviu para proteger aqueles bandidos que estavam a serviço do estado cometendo crimes”, diz.
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